O Canto da Crítica: o erro fatal

Este filme poderia ter sido um fiasco. Por este (qual?) motivo e por muitos outros, que me abstenho de referir. Aparentemente, é um sucesso. Chamavam-lhe Liberty Valence. Foi morto quando tocava à porta de Cora Smith. Tocou duas vezes, foi o seu erro. O próprio realizador — na circunstância, um circunspecto John Ford, sem pala — confundiu-o com o carteiro e deu-lhe um tiro, no momento exacto em que o comboio, esse sim, apitava 3 vezes. A hora a que tudo isto ocorreu? Passavam dez minutos das dez. Eu sei porque ficou registado. Randy preparava-se para pedir uma moratória a Liberty Valence. Este tinha sido condenado, mas Randy não tinha, como sabemos, esperado pela execução da pena e acabou fazendo justiça pelas suas próprias mãos, suicidando-se. Por isso terá chegado a senador, num lamentável lapso do guionista. Mas uma testemunha (o próprio Randy, desta feita disfarçado de Jeffries para iludir um claro conflito de interesses) viu-o pela janela do seu apartamento e assegurava que não tinha sido ele. E o carteiro, reclamava Jeffries, não era o do Pablo Neruda, não era o de Cora Smith. Era…? Era…? Neste preciso momento o drama complica-se. Os pássaros invadem a pequena cidade. Uma pequena charrete percorre os caminhos do Central Park. à chuva. Gene Kelly apeia-se em andamento, escorrega e fractura a bacia. Nunca mais irá recuperar. Stella e Lolita, visitam Kelly no hospital. Kelly está numa cadeira de rodas. Cantam Soave sia il vento. Muitos espectadores (há disso notícia) acompanharam esta cena na estreia do filme com assobios e olés. Kelly irritou-se quando soube. Embora não estivesse habituado a resolver os assuntos a tiro, ao contrário de Randy, liquidou as suas companheiras, tendo de seguida soltado os travões da cadeira de rodas e ido pela Lombard Street abaixo. Depois de ser abalroado por vários carros da polícia e carros eléctricos, chocou contra um hidrante e desfez-se. Durante a descida vertiginosa, Kelly ainda sacou de um ukele e começou a cantar a sua versão de Flow my Tears. A coisa não poderia acabar bem. No meio do caos, Yul Brynner aparece a correr atrás de Charlton Heston, os dois vestidos de marinheiro. Heston promete que nunca mais. Brynner candidata-se a mayor de Los Angeles. Michael J. Fox aparece a andar de skate, enquanto toca ukele e canta, ele também, uma magnífica versão do Flow my Tears, em dueto com a pequena Judy Garland. Randy sente-se ultrapassado e, finalmente, reforma-se. O seu lugar de senador não será preenchido durante muito tempo. O carteiro voltou para junto de Pablo Neruda.

Filmes como este têm feito a história do cinema, mas têm também trazido efeitos catastróficos para a indústria. Morrem imensos actores e actrizes durante as rodagens. As seguradoras recusam-se agora a colaborar. “Não ganhamos para o tabaco,” declara o presidente da Equity Transgender. Deviam deixar de fumar, respondem os espectadores, ávidos de bom cinema. Mas estes mesmos espectadores, é justo assinalá-lo, invadem os consultórios dos psiquiatras, confundidos com os enredos cada vez mais tortuosos. É a crise. Os produtores recorrem ao ICA e aos pais.

Vale a pena ver este filme? A sério, vale a pena ver este filme? A única resposta possível é a que aqui hesito dar. Deixo a interrogação. É um caso clássico de identidade trocada.